12/05/2015

DOMINÓ DA MEMÓRIA

 
Pode me chamar de emotiva, exagerada, nostálgica, patética, histérica. Sou tudo isso e um pouco mais, muito prazer. O fato é que sofro com as perdas. E esse ano começou pesado. Está desabando, peça por peça, o dominó da minha memória. Primeiro foi o Jornal “O Sul”. Há anos eu estava apegada aquele toque, ao movimento matinal de folhear, ao cheiro de página, entende? Pergunte-me se fui buscar a versão digital. Nunca mais!
Depois foi o Plazinha - um hotel que hospedou o glamour da cidade desde 1958 e que, para minha geração, significou o programa descolado-chic da feijoada aos sábados no centro. Pois ontem o Plazinha também bateu as portas na cara da nossa memória.
Agora veio essa: dia 18 de maio teremos que nos despedir da Rádio Ipanema. Já foi duro aceitar, em 1999, o abrupto calar da voz de Kátia Suman, que comandou meu ritmo musical nos anos oitenta e noventa. Agora vão desligar a rádio toda?!? Diz a notícia que depois de 32 anos de história, a Ipanema estará “migrando para o mundo digital” - que deve ser aquele lugar onde colocam as coisas obsoletas de castigo. Ali, entre a vitrola e o pinguim de geladeira. O quê? O pinguim já se mandou para a Antártida?
Ouça a próxima: estive na Vivi Vídeo (onde vou há 29 anos locar “fita tape”, depois dvd, então blu-ray, e onde achei que logo pediria por um archival disc) e encontrei a placa: “Vamos fechar! Compre seu filme por apenas R$12,00”. Se até a Vivi Video está indo dali, o que me garante que de repente não sumirá o Moinho de Vento do Parcão?? (que, aliás, já foi hipódromo e estádio de futebol...)
Deem explicações e tempo para absorvermos as mudanças radicais. Deem assistência, consolo, colo. Não se pode derrubar as peças assim, sem um colchão emocional. São vínculos fortes.
Estou arrasada. Sem chão. Sem pernas. Sem fé no futuro.
Prepare-se. Parece que até o clássico Gre-nal está ameaçado: andam juntando as torcidas, um troço misto, e daqui a pouco tudo ficará lilás.  
E, dizem, vai faltar água no Rio Guaíba.  
Só resta anunciarem que o aeroporto Salgado Filho fechará e seremos tele transportados para um lugar melhor. Eu fico! - inarredável, amarrada, agarrada na última pedra de memória.       

10/05/2015

CONTRA O PODER DO BISTURI

Para refletirmos nesse dia das mães:
 
Foto de Tatiana Druck. Não que eu tivesse torcendo por alguma complicação, benzadeus! Mas confesso: também me surpreendi com a rapidez do parto da princesinha da Kate (“Kate”..., sorry, a celebridade é uma merda). Pois então. A duquesa deu um pulinho ali no hospital, pariu, e dez horas depois já estava em casa. Assim. Como quem vai tomar chá com as amigas, ou comprar meias no shopping.

Achei o máximo. Na verdade, invejei. Eu que tive duas cesarianas e que sonhava em caminhar e sorrir após o parto (em vez de incorporar aquela cara de “tudo bem, vai passar” para visitas, e agonizar as dores e limitações de uma cirurgia abdominal), me senti a gata borralheira esfregando o chão, enquanto ela, a diva parideira, deu a luz rapidinho e ainda saiu da maternidade de braços dados com um príncipe! Assim surreal.

Foi aí que esse tema voltou a me ocupar a cabeça.

Temos que rever nossos conceitos com urgência. Nós, as plebeias brasileiras sem títulos da coroa. A realeza é que sabe viver glamourosamente como bicho. Consegue parir fácil como qualquer animal faz. E fica logo pronta pra cuidar, amamentar e curtir seu filhote.

É claro que nem sempre é possível optar pelo parto normal. A OMS informa que 15% dos casos exigem intervenção. Eu mesma tive meu primeiro filho de urgência e prematuro (já minha segunda cesárea foi eletiva, e até hoje me culpo por não ter ido contra as “indicações” – quase sempre discutíveis - que recebi).

Sabemos que na maioria das vezes cesariana é uma escolha. Uma opção conveniente aos médicos, que organizam sua agenda e poupam tempo. Conveniente aos hospitais, que otimizam leitos. Conveniente às mães, que evitam a temida dor e o risco de sair esbaforida (sabe-se lá quando) com a sacola na mão e a bolsa rompida. Não são razões suficientemente nobres, vamos convir. Mas são as que nos movem.

Revisei as estatísticas: o Brasil segue o campeão mundial de cesarianas. Um quadro crescente e chocante. Aqui, 56% dos bebês nascem pelo poder do bisturi (84%, na rede privada de saúde!). A média mundial é de apenas 18%.

Vamos questionar essa cultura do avesso, desfazer mitos, exigir a informação que está nas mãos de poucos. Refletir e posicionar-nos com firmeza. Encorajarmo-nos. Vamos tratar com mais normalidade o que é por definição normal: a procriação.

Estamos falando de intervenção desnecessária, com todos os riscos inerentes: anestesia, infecção, hemorragia, cicatrização, pós-cirúrgico. Há 10 vezes mais mortes maternas. Poucos sabem, mas numa cesariana cortam-se sete (sete!) camadas de tecido até chegar ao bebê (para quem se interessar: pele, gordura, aponeurose, músculo, peritônio parietal, peritônio visceral e útero). Mexa-se, com um buraco desses.

Por fim, é cientificamente comprovado (e não há polêmica sobre isso) que o parto normal é mais saudável para a criança (orgânica e emocionalmente falando): elimina líquidos do pulmão, produz corticoide, favorece a amamentação. Já deveria ser o suficiente para decidir, não?

Assim, você que está em tempo de optar: pense nisso. Que tal ser normal como uma duquesa?
 

07/05/2015

OS LIMITES DA LOUCURA

OS LIMITES DA LOUCURA

Tenho uma amiga que não pode ver fiozinho solto (esses fiapos de costura que levantam em blusas, tecidos em geral). A doida puxa seu isqueiro e - plic! - queima instantaneamente o problema antes que a vítima possa dizer “não, eu adoro esse fiapinho” ou “não, por favor, tenho medo de fogo”, ou seja lá qual argumento de defesa for. Ela é rápida no gatilho. E ainda fica com aquele sorriso heroico de canto de boca, do tipo “resolvi-seu-problema” – e a fumacinha subindo por trás da cena. Comovente assim.

Até aí tudo bem, quem não tem seus TOCs? Eu seria hipócrita se achasse normal, por exemplo, meu hábito nas refeições: só termino um prato com as garfadas equilibradamente distribuídas. Significa dizer que não engulo o arroz sem a respectiva cobertura de feijão, junto do pedacinho de carne e uma batatinha do mesmo tamanho, tudo em igual proporção - vá ser louca assim lá no refeitório do hospício.

Mas também é sabido que a loucura tem seu glamour. Rende música, filme, arte – ‘De perto ninguém é normal’, Caetano diagnosticou com precisão poética. Uma loucurinha de estimação pode até ser divertida, se for tranquila a forma como a pessoa lida com seu lado estranho. Eis então o primeiro limite da loucura: o convívio pacífico do maluco com sua maluquice.

Uma tia, por exemplo, para em frente à gôndola do supermercado e fica lá girando os potes, arrumando-os por cor e tamanho. Vai deixando tudo perfeitinho até que se dá conta dos trinta e sete minutos que perdeu nisso e se irrita com a própria insensatez. Então, num rompante de lucidez embaralha todos os potes e sai caminhando aliviada, com cara de paisagem, já puxando sua listinha de compras do bolso. Só falta olhar para cima e assobiar. Essa passa, né?

Já minha enteada tem o hábito de usar delineador nos olhos dezenas de vezes por dia (até antes de entrar no banho!). Quando confrontada com seu exagero, defende-se louca-da-vida: - “Me deixem com essa loucura que é a única que eu tenho!”

Todo mundo quer uma insanidade pra chamar de sua. Respeitemos. Desde que não cause sofrimento, que fique cada louco com a sua mania.

Voltemos à amiga queimadora de fiapos. O problema é que nesse caso ela pode machucar as pessoas com seu espontâneo gesto. E se a manobra dá errado? Se for um tecido altamente inflamável e – shlaf! - o sujeito pega fogo como se estivesse coberto de combustível? Há um risco envolvido. Eis então o outro limite necessário à loucura: a incolumidade alheia.


Por essas e outras, o Ministério da Razoabilidade adverte: usufrua sua loucura com moderação e guarde-a em lugar apropriado. Vale a mesma ponderação usada para pets de estimação: pode levar a loucura para passear, brincar, expor, se divertir. Mas não pode soltá-la por aí para atacar quem passa perto. Tem loucura que mata. Toc, toc, toc.


1o lugar no 10o Concurso Mário Quintana - 
publicado na Antologia Lavra Palavra, POA: Sintrajufe, 2014.