22/10/2015

QUEM NÃO CHORA NÃO MAMA












Assim como crianças que “pedem bonitinho” acabam conseguindo o que querem, aquele pessoal criativo e obstinado da Itália, que performou “Learn To Fly” em 1000 vozes pra chamar atenção da banda Foo Fighters, conseguiu seu intento: hoje foi confirmado. O show será dia 3 de novembro, na minúscula cidade de Cesena. Lugar tão famoso e importante quanto Poissy, perto de Paris. Ah, não conhece? Nem eu.

Cesena tem o tamanho de uma ervilha. O show será no pátio da paróquia, imagino. Que importa? Tamanho não é documento. Ímpeto, sim.

Essa é a prova de que pequenas ideias (se criativas e bem executadas) movem montanhas. É um mote de inspiração para esses tempos de crise, em que nos habituamos a lamentar tanto, que não sobra nem tempo, nem energia, nem astral para criar soluções geniais.

Essa gente ousou. Pensou bonito. Ignorou seu tamanho. Contou com fé, determinação e amor à causa - que podia ser perdida, tanto faz, estavam se divertindo com o sonho. Apostaram na rebeldia e na arte. Protestaram com paixão. E vai dizer: ficou mais que bonitinho, ficou comovente.

Lembrei das crianças em geral e suas manobras desconcertantes. Minha filha aos seis anos me assaltou na garagem, vestida de meliante - usava máscara de mergulho como disfarce e, como arma, uma assustadora espada de plástico com luz piscante: raspou minha carteira. Se insistisse um pouquinho mais, teria levado o carro também.

O mundo é dos corajosos.

A encantadora surpresa do pessoal de Cesena pôs o Foo Fighters em xeque mate: como ignorar tanto amor oferecido por aquelas (aparentemente) insignificantes formigas?

Celebridades também têm coração.

O (aparentemente) inacessível elefante se rendeu ao apelo amoroso. E vai retribuir com serenata na janela do formigueiro.

20/10/2015

POETA OU BEATA



É preciso crer na poesia
para conter a ventania do dia de finados
para espanar os cantos nublados do céu
e iluminar a praça durante a quermesse

É preciso crer na poesia
para que a prece do dia tenha força
a conta da vida, menos pressa
e as almas vazias, algum trocado

É preciso crer na poesia
para que o pranto busque redenção
e a ave-maria a sua graça
num domingo ensolarado de missa

É preciso crer na poesia
para que a tentação mereça o seu pecado
e o arrependimento, o seu perdão.


(in "ANTES ARTE DO QUE NUNCA"
de Tatiana Druck)

11/10/2015

FERIADÃO NA SELVA DA VIDA



Houve o tempo em que eu era um pinguim. O trabalhinho que minha filha fez na escola veio em garatujas, mas parecia sério: “Com que animais sua mãe se parece? Minha mãe é um pinguim porque me abraça gelada; é um tigre porque corre bem; é uma coruja porque me cuida quando durmo.” 

Guardei a prova de afeto para quando a pimpolha crescesse e me visse com outros olhos.

O tempo passou e – bingo! - hoje em dia sou um jumento. Às vezes, víbora. Na maioria das ocasiões, típica ameba. Sim, a adolescência chegou à minha casa. Já se adota um dialeto estranho, do tipo “quem mocou meu tênis?” ou “não pilho de jantar agora” e, confesso, eu mesma me pego exclamando “partiu! tô vazando daqui” (comunicação é a lei da selva).

O habitat no domicílio está visivelmente diferente: skates pelo chão, som em altíssimo volume (veja bem, não estou falando de Mozart) e pizza de manhã. Uma selvageria.

Mas eu seria um verdadeiro jumento se achasse que está tudo errado. É a vida. Lembro que aos treze anos troquei a foto dos meus pais no porta-retrato: pus minha adorável hamster Bianca - uma singela atualização nos referenciais de idolatria. Fui além: pendurei pôster dos roqueiros malucos do ACDC na porta de fora do quarto. O mesmo que placa de “Não Entre”, só que ilustrada.

O que mais choca no mundo radical da adolescência é a inversão abrupta dos pais-heróis: o poderoso leão da selva de repente vira um moscão tonto e não há muito a fazer. Adultos não sabem das coisas e não pertencem ao bando. Pior se forem da espécie “pais”.

Não chego a me assustar, sei que a fase passa. Bem verdade que certos dias gostaria de trocar de reino: virar uma bromélia de sombra e ficar disfarçada de vegetal, esperando a adolescência se retirar do recinto.

Admiro a sabedoria da mãe-salmão: ela põe seus ovos sobre um ninho de pedregulhos e recosta docemente para morrer no fundo do mar. Ali termina sua missão, logo no início da maternidade. Ela não fica para ver os filhos recusarem um beijo de manhã ou para ouvi-los sentenciar que sua técnica de subir a correnteza já está ultrapassada há séculos. Mas logo sacudo a cabeça e recobro o norte: viva a maternidade tradicional! Filhos sentados em turma à mesa, todos falando ao mesmo tempo. E de boca cheia.

Para sobreviver basta aceitar as regras da natureza. Por isso, durante a adolescência esqueça a cena da galinha com os pintinhos sob as asas - eles vão passar o feriado de 12 de Outubro com a galera, bem longe de você.

Foi-se a temporada de ursos com abraços matinais. Relaxe, seremos ouriços do mar por um tempo. Na segunda-feira aproveite para descansar - é feriadão. Aninhe-se com o gato em frente à TV. Faça-lhe cafuné que ele lhe fará companhia.

E nem argumente que o feriado é tributo à Nossa Senhora Aparecida, aquela mãe anunciada que merece reconhecimento e blá, blá, blá. Não faça drama. Apenas reze para que eles voltem direitinho.

Lembre-se também que 12 de Outubro foi o dia oficial do descobrimento da América: o encontro entre o Velho e o Novo Mundo. E quando os colonizadores chegaram, tudo era selva.


08/10/2015

O PREFEITO ENTROU NA ONDA





Assim como Iemanjá um dia devolve as oferendas lançadas ao mar, ontem o Prefeito Fortunati devolveu a prancha de surf oferecida ao Monumento do Laçador durante a Semana Farroupilha - então apreendida pelas autoridades. 

Para quem não soube: o pessoal do Surfari, diagnosticando o olhar frio e parado do Laçador como uma tristeza melancólica de quem nunca conheceu o surf, construiu uma prancha especial para o gauchão. Não só: na calada de uma madrugada fria, os caras botaram-na sob o braço do gaudério, de forma que ele amanheceu louco de faceiro (garantem eles), com pinta de Kelly Slater dos pampas, mirando a estrada para o litoral já com outra vibração. 

A ideia da intervenção, além de chacoalhar a ordem e rir um pouco numa época de tanto cenho franzido, era divulgar o “Surf Criollo” (modalidade em que o surfista é puxado por um cavalo à beira de um açude) e mostrar que esse esporte pode estar mais próximo das lidas campeiras do que se pensa. 

Apesar do tom paz-e-amor do gesto, foi considerado subversivo e a prancha acabou recolhida pela fiscalização. O Prefeito reprovou, alegando risco de depredação do patrimônio público. 

Mas Fortunati, bom coração que é, logo entendeu a brincadeira e seu caráter cultural transformador. Acolheu o pedido público de desculpas dos responsáveis e topou encontrá-los para tomar um mate, conhecer a Associação El Surf Criollo e... devolver a prancha. 

Tudo isso foi feito ontem, sob a torrente de outro lindo projeto exposto na Usina do Gasômetro: o Tampar - do artista Ubiratan Fernandes, que utiliza 130 mil tampinhas de garrafa pet num ondão gigante, com o objetivo de chamar atenção para a degradação e acúmulo de lixo nos oceanos. 

Melhor cenário não haveria. O Prefeito literalmente entrou na onda: subiu na prancha e surfou sobre a instalação da Tampart (https://www.facebook.com/tampartproject).

Já os guris do Surfari comemoraram o retorno do objeto simbólico – quiçá estão armando missão revolucionária na vizinhança, para fazer felizes também os generais José de San Martin (na Argentina) e Artigas (no Uruguai). E a façanha ainda servirá de modelo aos monumentos de toda terra (http://tatianadruck.blogspot.com.br/2015/09/como-aurora-precursora.html).

É que - dizem as lendas gauchescas – depois da ousada intervenção, o Laçador nunca mais foi o mesmo. Afirma-se que sob aquele sisudo bigode de bronze cinzento hoje habita um sorriso sereno e realizado. Típico de quem um dia, mesmo sem sair do lugar, descobriu o mar e a imensidão das possibilidades.